quinta-feira, setembro 28, 2006

O jantar

Rodou a chave na porta e entrou, deixando as chaves em cima da mesa da entrada, pendurou o casaco e pousou a pasta no chão. Enquanto se dirigia para a cozinha desapertava o nó da gravata que o sufocava constantemente. Ao percorrer o corredor, veio-lhe à memória os sons que caracterizaram até à pouco tempo aquela casa, hoje, em profundo silêncio. As crianças tinham crescido suficientemente rápido, talvez rápido de mais, e numa ordem natural da vida tinham seguido os seus caminhos.
Eles, enquanto pais tinham desde cedo decidido que lhes dariam as raízes para poderem voltar e asas para poderem seguir o seu rumo.
Encostou-se à porta da cozinha e espreitou lá para dentro… por entre o vapor das panelas visualizou uma sombra encoberta sobre o lava-loiça, demasiado compenetrada na árdua tarefa da prática criativa do jantar.
Ela voltou o rosto confirmando assim que notara a sua presença na cozinha. Sem mais voltou-se de novo para as panelas.
Ele sentiu-se cansado e foi para a sala, ligou a televisão e perdeu-se no mundo das notícias, perdeu-se no mundo que não era seu.
Saiu do seu torpor ao ouvir que o jantar estava pronto. Levantou-se e foi para a mesa. Iniciou-se o ritual de sempre, cada um debicando a comida e tragando as mágoas numa garrafa de Merlot. Pensou em várias coisas para lhe contar, mas por mais que tentasse falar, mais sufocado se sentia, menor vontade tinha de quebrar aquele silêncio.
Do outro lado da mesa, ela comia mecanicamente, mastigando devagar, de olhar vazio e impenetrável.
-Passa-me o vinho, por favor. Quase sem perceber tinha-lhe entregue a garrafa e voltara para o seu lugar.
Tirando aquelas parcas palavras e um breve relatório sobre as actividades dos filhos que, no meio das azáfamas da faculdade tinham ligado, o jantar terminara, tal como se iniciava todos os dias.
Levantaram a mesa em silêncio.
Voltou para a sala e nas paredes viam-se sorrisos, brincadeiras e alegria. Os primeiros passos do João, o fato de Carnaval da Maria, o piquenique na Serra da Estrela por imposição da filha mais nova, quando estavam quase 3 graus negativos, as fotos de uma vida que já não existia.
Sentiu-se deveras cansado…Quando ela se sentou na outra ponta do sofá, olhou-a atentamente por leves segundos e não a reconheceu.
Quem eram eles agora? O que os unia neste momento, agora que finalmente poderiam estar mais tempo juntos, percebeu que o tempo os afastou e já era demasiado tarde para colar os cacos.
Sentados em frente à televisão, cada um no seu mundo, reinava o silêncio.
Naquela noite, quando se deitou, sentiu-se velho, perdido e sem rumo.